Papa Francisco canoniza religioso por milagre realizado em Roraima
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20/10/2024 11H21
Milagre atribuído à intercessão de Allamano ocorreu em 1996, na Terra Indígena Yanomami / Foto: Vatican Media via Vatican Pool/Getty Images /
O papa Francisco proclamou 14 novos santos neste domingo (20), durante a Missa na Praça de São Pedro. Entre eles, está o italiano José Allamano, religioso fundador da congregação dos Missionários da Consolata, canonizado por um milagre na Amazônia.
O milagre atribuído à intercessão de Allamano ocorreu em 1996 na Floresta Amazônica brasileira, no estado de Roraima, onde Sorino, da etnia Yanomami, foi atacado por uma onça que feriu gravemente a sua cabeça, abrindo-lhe o crânio. Ele foi socorrido pelas missionárias da Consolata e transportado para o Hospital de Boa Vista. As religiosas pediram sua recuperação ao fundador deste instituto missionário, o padre Allamano.
Sorino recuperou a saúde em poucos meses e atualmente vive, sem sequelas, em sua comunidade indígena na Terra Indígena Yanomami.
Giuseppe Allamano nasceu em 1851 no Piemonte, norte da Itália, e morreu em 1926 na mesma região. Foi um missionário que nunca partiu da Itália, mas incentivou a participação dos sacerdotes em missões, principalmente no Quênia, na África, e no Brasil – onde seu nome foi traduzido para José.
O religioso foi proclamado beato em 1990 pelo Papa João Paulo II.
Ataque de onça
O indígena Sorino estava caçando com um grupo na floresta, armado de arco e flechas, quando foi ferido por uma onça-pintada que, segundo relatos, estava acompanhada por filhotes. A felina atacou por trás, arrancando parte do couro cabeludo do homem e abrindo sua cabeça. O grupo de caçadores Yanomami tentou socorrê-lo e, devido à gravidade dos ferimentos, pediu ajuda às religiosas que viviam as proximidades.
Felicita Muthoni, de origem do Quênia, foi a primeira missionária a dar assistência. “Um dos indígenas veio me chamar porque o seu cunhado havia sido ferido por uma onça. Quando cheguei na aldeia, havia um homem estendido no chão de terra sobre uma poça de sangue”, contou ela, à RFI. “O crânio dele estava aberto e pedaços de cérebro para fora. Com delicadeza, limpei com água, coloquei os pedaços do cérebro no crânio, e amarrei o seu couro cabeludo com o único tecido que eu tinha, minha blusa”, disse a missionária.
A irmã Felicita contou que os indígenas acreditavam que Sorino não sobreviveria e houve relutância por parte dos líderes Yanomami sobre levá-lo ao hospital. “Os pajés me diziam que se Sorino morresse fora da aldeia, não encontraria nunca mais seus antepassados. A porta ficaria fechada ao seu espírito. No final conseguimos convencê-los que havia chances dele sobreviver”, lembrou. “O tempo todo eu rezava a Deus e pedia que José Allamano nos ajudasse”.
Cura sem explicação científica
O colombiano Mario Santacruz, médico neurocirurgião que trabalha há muitos anos no Hospital de Boa Vista, onde Sorino foi operado, recordou que a situação era gravíssima. “Sorino era jovem e chegou no hospital depois de três dias de viagem desde a sua aldeia. Seus ferimentos eram graves, com perda de osso e substância cerebral. Fizemos a operação, mas perdeu grande parte do cérebro no lobo frontal, parietal, temporal e parte do occipital. Para nossa surpresa ele foi se recuperando bem e ficou sem nenhuma deficiência”, explicou à reportagem RFI.
Segundo o médico, não há explicação científica para esta recuperação do indígena. “Considerando a perda da substância cerebral, ele teria um déficit muito grande com danos motórios, paralisia e problemas intelectuais. Fizemos todos os exames e constatamos que ele voltou ao normal, sem sequelas.”
Indagado sobre acreditar em milagre, o neurocirurgião respondeu: “Apesar de a minha educação familiar ser católica, naquela época do incidente eu era mais concentrado na parte científica. Mas depois desse caso, comecei a acreditar que o milagre existe”.
Histórico da missão na Amazônia
A Missão Catrimani com os missionários de Consolata na Terra Yanomami, que leva o nome do rio brasileiro ao oeste do estado de Roraima, foi criada pelo Concílio Vaticano II durante a década de 1960.
“Especificamente na Terra Yanomami, a missão não é de anúncio explícito do evangelho. Foi criada para o diálogo, valorização da cultura e do respeito à forma religiosa que o povo indígena vive, sem fazer proselitismo”, afirmou o bispo de Roraima e presidente da rede Eclesial Pan-Amazônica, dom Evaristo Spengler.
Segundo ele, a missão tem trazido proteção a este povo indígena da Amazônia, embora haja áreas onde a floresta foi devastada e os rios foram tomados pelo garimpo.
“Naquela região, o povo Yanomami consegue proteger a floresta e os rios por causa de uma consciência nova que a Igreja vai levando, no seu direito à vida, na sua dignidade como povo. O diálogo não é no sentido que um seja superior e o outro inferior, é de igualdade. Queremos nos enriquecer mutuamente a partir da espiritualidade, da visão de mundo e da cultura de cada um”, ressaltou.
Na apresentação da canonização de José Allamano no sábado (19/10), na sala de imprensa do Vaticano, também estava presente Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduunme) e líder indígena do território Yanomami em Roraima.
“Estamos pedindo socorro aos europeus e ao mundo. Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, sofremos a invasão ilegal de garimpeiros que trouxeram vários tipos de doenças, contaminaram nossos rios e estão destruindo a floresta. Perdemos muitas vidas, inclusive de crianças”, disse à RFI.
Júlio Ye’kwana ressaltou que o governo Lula decretou emergência na saúde pública na Terra Yanomami e tenta corrigir os erros do antecessor, mas ainda há muito para ser feito.
“As águas dos rios contaminados pelo mercúrio nunca mais voltarão a ser limpas. É muito difícil reconstruir a floresta. Estamos sofrendo as consequências. Muita coisa ainda deve ser feita pelo governo Lula em relação a combater doenças”, salientou o líder indígena.
A situação ambiental foi agravada pelas mudanças climáticas. Como se não bastasse enfrentar o garimpo e a crise humanitária, com surtos de gripe e malária, desnutrição, estupros, violência, mortes e destruição do meio ambiente, o povo Yanomami sofre agora com a série de incêndios que devasta suas casas comunitárias, suas roças e bens de subsistência.
Violência contra indígenas no Brasil
O cardeal Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus e presidente do Conselho Indigenista Missionário, falou da importância deste milagre para a comunidade Yanomami. Ele também ressaltou as difíceis condições de vida dos povos indígenas.
Entre 2018 e 2022, na Terra Indígena Yanomami, mais de 500 crianças com menos de um ano de idade morreram por causas que poderiam ter sido evitadas. Segundo o cardeal, com o governo Lula houve uma melhora, mais ainda é insuficiente.
De acordo com o último relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a violência contra indígenas persistiu em 2023, ano marcado por ataques a direitos e poucos avanços na demarcação de terras. O documento mostra que o primeiro ano do terceiro governo Lula foi marcado por impasses e contradições na política indigenista.
“As disputas em torno dos direitos indígenas nos três Poderes da República refletiram-se num cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios em 2023. O primeiro ano do novo governo federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes”, aponta o relatório.
O Cimi concluiu que o ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas repercutiu, nas diversas regiões do país, na continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades e pela manutenção de altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade na infância entre estes povos.
FONTE: METRÓPOLES
Categoria:Internacional