Parceria entre a Corregedoria-Geral de Justiça do TJRR e a Marinha do Brasil promove autonomia, segurança e cidadania aos povos indígenas do eixo fluvial do rio Curiaú / Foto: Nucri/TJRR /
“É importante ter o conhecimento que o pessoal trouxe da Marinha do Brasil, para nós [referência aos indígenas] ter habilitação, para ter o futuro para o nosso povo, para reconhecer o que é a legislação marítima. Sem isso, a gente não avança para o futuro do povo Waimiri-Atroari”, afirma Tuwadja Vanilson Waimiri, jovem indígena e aluno do curso de Marinheiro Auxiliar Fluvial Amador (MAF).
Com voz firme e olhar de quem sonha com um futuro melhor para sua comunidade, ele resume o sentimento de conquista que marcou a formatura da primeira turma, realizada em 9 de outubro, na Terra Indígena Waimiri-Atroari, às margens do rio Curiaú.
Entre os dias 9 e 26 de setembro, a comunidade recebeu, pela primeira vez, um curso ministrado dentro do próprio território, conduzido por representantes da Capitania dos Portos da Amazônia Ocidental, em parceria com a Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR).
A ação nasceu de uma solicitação feita pela própria comunidade, com o objetivo de ampliar a segurança nas navegações, aprimorar o conhecimento técnico e estimular a autonomia dos povos do rio.
O curso é resultado de um processo que começou há décadas. A presença do Tribunal de Justiça de Roraima junto ao povo Waimiri-Atroari é fruto de uma política de aproximação baseada no diálogo e na confiança mútua.
"O povo Waimiri-Atroari é uma comunidade indígena tradicional, muito orgulhosa de sua história, e que vive nessa região há séculos, talvez milênios. (...) Na época da abertura da estrada Boa Vista–Manaus, houve conflito, doenças e perda de vidas. De cerca de 3 mil pessoas, sobreviveram apenas 374. Hoje já estão chegando novamente a 3 mil. Era uma população que tinha muito medo de contato com entes públicos, e graças à ação da Justiça de Roraima essa barreira foi sendo quebrada”, destacou o desembargador Erick Linhares, corregedor-geral de Justiça do TJRR.
Ainda segundo o magistrado, o Tribunal atua como articulador de ações conjuntas entre diferentes instituições, tornando-se uma ponte entre o Estado e as comunidades indígenas.
História de parceria e confiança
A aproximação institucional com os Waimiri-Atroari começou em 2017, após diálogo com a Funai e lideranças locais. O primeiro atendimento levou serviços básicos de documentação e cidadania — e o sucesso da iniciativa resultou em uma rede de cooperação que envolveu a Defensoria Pública do Estado de Roraina, Ministério Público de Roraima, Receita Federal, Secretaria de Segurança Pública, Instituto de Identificação Odílio Cruz e o Cartório de Rorainópolis.
Como desdobramento, em agosto de 2021, o TJRR inaugurou o Posto Avançado de Atendimento Judicial no Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari (Nawa), localizado na BR-174, entre Rorainópolis (RR) e o Amazonas.
“As pessoas mais simples muitas vezes têm pouco contato com o sistema de Justiça e, em geral, o conhecem apenas por meio da Justiça Criminal. O que buscamos mostrar é esse outro lado da Justiça — o da garantia de direitos, que é muito presente no nosso Tribunal. A Justiça de Roraima tem o compromisso de alcançar todas as pessoas, especialmente aquelas que mais precisam, levando cidadania e acesso à Justiça até onde está a comunidade”, ressaltou o desembargador Erick Linhares.
Tradição, conhecimento e segurança nas águas
O rio é mais do que um caminho para o povo Waimiri-Atroari — é parte da própria vida. O desembargador Erick Linhares explicou que o indígena “nasce praticamente na água, no rio, aprende a nadar antes de falar papai e mamãe”. Segundo ele, o Tribunal entrou em contato com a Marinha, apresentou a realidade dos kinjás (indígenas) , e a instituição teve sensibilidade para realizar o curso ali mesmo, junto com o povo, respeitando seu modo de vida e seus costumes.
O capitão de Mar e Guerra André Carvalhaes falou sobre a riqueza da troca de saberes.
“Os indígenas nasceram sabendo navegar. O primeiro brinquedo deles é a canoa. Então o que a Marinha vem ensinar é a segurança, as regras que eles vão encontrar navegando mais longe. É um movimento em que a gente tem muito a aprender, mas também algo a ensinar."
A defensora pública Elceni Diogo também enfatizou o valor da parceria,
“A comunidade Waimiri-Atroari, especialmente os residentes no eixo do rio, têm uma relação de dependência muito grande com as embarcações. Esse trabalho feito com a Marinha, por meio do Tribunal de Justiça, resolve um grande problema que, sem essas parcerias, eles provavelmente não conseguiriam enfrentar."
Orgulho e emoção: o legado do aprendizado
Durante a cerimônia, o líder indígena Kabaha Paulo Waimiri não conteve a emoção ao ver os jovens se formando.
“O pessoal jovem que aprendeu com vocês [os não indígenas], com esse curso, o conhecimento que vocês passaram, isso eu gostei muito. Eles entenderam o curso, aprenderam, e eu fiquei muito emocionado também.”
O capitão André Carvalhaes destacou a importância da união entre todos. “Na Amazônia, assim como em qualquer lugar do mundo, ninguém consegue fazer a diferença sozinho.”
Joanico Waimiri, coordenador de educação da comunidade, resumiu o sentimento coletivo. “O Tribunal de Justiça é quem traz oportunidades, quem permite que a gente tenha mais acesso e consiga alcançar o que buscamos. Essa parceria com a Marinha do Brasil e com a Associação Waimiri-Atroari é um ponto de referência importante para o nosso povo.”
O curso de Marinheiro Amador Fluvial representa o resultado concreto de um trabalho contínuo da Corregedoria-Geral de Justiça do TJRR, em parceria com instituições públicas e comunidades tradicionais. É a prova de que a Justiça pode — e deve — navegar até onde as pessoas estão, respeitando suas culturas e valorizando seus saberes.
Nas águas do rio Curiaú. o aprendizado vai além da técnica: ele é símbolo de cidadania, autonomia e esperança.
Hoje, cada embarcação que parte das margens da terra Waimiri-Atroari leva não só seus tripulantes, mas também o reflexo de um Judiciário que acredita em inclusão, diálogo e transformação social.
EDUARDO HALEKS